quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sessão sofá

Ele nunca tinha ido ao cinema, mas tinha visto muitos filmes em preto e branco na tevê. Tudo girava em botões, sem vestígios de controles-remotos. O gato da casa gostava de dormir ronronando no calor do teto da tevê de válvula, edifícios iluminados dentro da caixa de madeira. Na tela, o mar vermelho se abria deixando passar os fiéis do deserto, com o faraó correndo em bigas, para naufragar quando Moisés descesse seu cajado a mando do Senhor. O cinema, para ele, era o sagrado: Jesus suspenso na cruz ressuscitando ao terceiro dia; Sansão tosado derrubando colunas; Lúcia, Jacinta e Francisco ante o fulgor da virgem de Fátima. O cinema era seu evangelho. As mil possibilidades nas chagas abertas do Cristo, muito antes de 2001, de A guerra do fogo, a metafísica de Solaris. O cinema era sua descida ao inferno. Rezava, herege, para que a professora morresse para não perder a reprise de Fúria de titãs; Simbad, o marujo, Jasão e o velocino de ouro e o tosco vôo de Aladin. Os mesmos filmes exaustivamente repetidos na Sessão da tarde, vistos como se da primeira vez.






13 comentários:


Eduardo Araújo disse...
No mundo cinza o Telefunken, passaram O pássaro azul, As sete faces do Dr. Lao, A maravilhosa fábrica de chocolate, Doroty, em O mágico de Oz. Só ganharam cores anos mais tarde, com o western espaguete do Sérgio Leoni recortado para caber no pífio retângulo do Philco Hitachi. O cinema era o futuro: o vôo do ET com a lua de fundo, os sabres de luz de Luke Skywalker, de Tlön, de A mosca, o futuro ameaçado de O exterminador, destroçado de Mad Max, o passado bárbaro de Conan.
Eduardo Araújo disse...
O cinema mal visto na tevê era toda sua fantasia, sua fuga, seu desvio. Não havia livros ainda. As histórias reinventadas à alta madrugada. A bolha de plástico que aprisionava Travolta, as lágrimas derramadas com o menino de O campeão. Não conhecia o inferno de O exorcista, o paraíso erótico de Lagoa azul, mas já invejava infinitamente a irmã mais velha e primas que foram ao Cymaflor assistir a Dio como te amo.
Eduardo Araújo disse...
Os filmes, naquele tempo, eram menos que p&b: cinza pálido, luz pontilhada por chuviscos, soluços de som da caixa de pandora (22 pol.) que alargava a paisagem da janela, bloqueada por morros, ruas de lama, nenhuma possibilidade de futuro. Ele nunca tinha ido ao cinema, e o cinema revelava que tudo pode ser mais. A educação sentimental aprendida com A garota rosa-shocking, Gatinhas e Gatões, Clube dos cinco, Curtindo a vida adoidado, Porks.
Eduardo Araújo disse...
Ainda não havia visto Alien e A mosca, o segundo e terceiro filme que assistiu no cinema. Muito antes desses, assistiu de madrugada E o vento levou, e passou a adorar tudo que se chamasse clássico. Odiava os palavrões nos vulgares filmes nacionais. Mas, excitado, queria ver indecentes pornochanchadas no Sala Especial, que mal cumpriam a esperança de um peitinho. Os filmes na tevê ainda não eram para ele o que seria depois o Cinema. Era uma transgressão, olhos que ficariam arruinados para sempre. Sua semi-cegueira feliz, sua miopia tardiamente diagnosticada.
Eduardo Araújo disse...
Os filmes aperfeiçoavam a vida comezinha, os dias iguais, tristes, impiedosos. Idolatrava as vilãs dos filmes B´s americanos, terror sem sangue, melodramas contundentes, duras histórias de tribunal. Testemunha de Acusação, na madrugada.
Eduardo Araújo disse...
A dama do lotação, Os sete gatinhos, Perdoa-me por me traíres, Bonitinha, mas ordinária, - o Brasil era então um incompreensível - emaranhado de taras, pentelhos, mulheres nuas e negros. Longe dali havia o inferno de Pixote, de Lúcio Flávio, Vera. Jamais se lembraria de ter ido ao cinema com o pai ou a mãe. O mundo terrível de Cristiane F não era para ele, pois ele queria a alegria dos finais felizes. Algo como o rosto inesquecível de Michele Pfeifer em Áquila, os tiros abatendo Glen Close para sempre na banheira, a moeda de Ghost suspensa no ar.
Eduardo Araújo disse...
Só no futuro, receberia os amigos em casa sessão em vhs de Laranja Mecânica, A última tentação de Cristo, O poderoso chefão.[Kieslowski, Almodóvar, Bergman, Fellini, Buñuel e Hitchcock chegariam só mais tarde, misturando-se sem conflito a todos os dramas, prazeres, soluçoes da vida]. Porque o cinema seria sempre a outra vida. A tela aberta feito ampla vela cinemascope, muito clara no escuro, para caber tudo. O cinema não mais passado ou futuro. Para fazer-se mais visível. Presente. Para evidenciar a vida. Sua brevidade. Seu fulgor. Luminoso, ilustrando, alucinando, iluminando-o.

Nenhum comentário:

Postar um comentário