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A boca da donzela
Um dia a donzela sonhou uma boca. Não que não soubesse sonhar um corpo inteiro; acontece que naquele dia quis sonhar somente uma boca. Não uma comum -- pois bocas comuns existiam aos milhares -- a sua boca haveria de ser especial; boca nunca sonhada.
Elaborou o contorno: nem muito fina, nem carnuda demais e, por levar seus sonhos a sério, não quis ir além dos limites da imaginação fazendo outra boca que não fosse vermelha. Tendo definido a cor, achou que a boca deveria ser doce. Para princesa era loucura imaginar uma boca sem gosto.
Nas primeiras noites ficou totalmente satisfeita com a boca sonhada; boca esta que por vezes parecia sorrir-lhe flutuando segura no vazio. Com o tempo, porém, irritou-se um pouco com aquela boca ali perdida no nada. “Que triste!”, bradou a princesa, “uma boca ser tão sozinha!” E olhando a boca, não demorou a perceber que aquela era uma boca de homem e que precisava urgentemente de um rosto.
Sonhar um rosto de homem não era coisa difícil; tantos homens que iam e vinham o tempo todo. Contudo, da mesma forma que na boca, a princesa quis se esmerar no rosto que sonhava.
“Tem que ser um rosto sincero, com olhos redondos e meigos para combinar com a boca; sobrancelha baixa, para dar ao rosto certo mistério, um certo atrevimento...” No nariz, parou uma semana. E como era difícil sonhar um nariz! Pois, em narizes, pouco reparava. Assim, tendo estabelecido o nariz, vieram fáceis a testa, as maçãs, o queixo. E o cabelo? Negro? Louro? Vermelho? E a cor da pele, qual seria?
Gastou mais uma semana para sonhá-la. Nem branca, nem negra, um meio termo: clareava no inverno para combinar com a neve e escurecia no verão, para combinar com a terra. E por não saber para que servia, estabeleceu que os fios da barba cresceriam lentamente, dando tempo de se optar.
Surpreendeu-se a princesa com a cabeça sonhada. Cabeça que custara a ela todas as noites de um mês inteiro. A cabeça era um sonho, porém depois de concluída pedia urgentemente um corpo.
- Cruz credo! - tremeu a princesa, se alguém sonhasse o mesmo sonho acharia com certeza que havia decapitado o pobre rapaz.
Foi assim que na mesma lentidão, a cabeça cobrou o corpo que a princesa foi sonhando.
Sendo insuficientes as noites, a princesa foi penetrando cada vez mais os dias, passando mais tempo no sonho do que na vida.
Assim de repente, ela foi tomando consciência das diferenças que havia entre aquele corpo e o seu: o ombro largo, para que servia? Talvez para suportar o peso das armaduras que o homem teimava em usar para fazer guerra. O tórax largo seria para as medalhas? Os braços musculosos, para levar donzelas? Longos, para atirar do arco, as flechas? E as pernas? Que razões teriam para serem tão cumpridas senão para se adaptarem à sela de cavalgar? Por mais sonhar essas coisas, mais descobria que o homem era definitivamente um ser estranho e que estranhamente lhe agradava.
Mas nenhum homem a agradava tanto quanto este feito inteirinho de sonho. Por esta razão: a de não concluí-lo, adiava o despertar, demorando-se nos detalhes mais fúteis, como o contar e recontar inúmeras vezes os dedos para ele sonhados.
Os pais já a haviam repreendido, dizendo que sonho demais era quase tão ruim quanto a realidade, mas ela nada ouvia, pois já sonhava acordada.
Sonhava um outono, quando percebeu que o moço não sorria. Achou que fosse a falta de dentes e sonhou-os brancos, perfeitos e bem escovados. Mas mesmo assim o cavaleiro não lhe sorriu. Notou que, desde o início não lhe fizera nem um gesto, nem uma palavra dissera. Nada. Achou que era pura timidez, pois ela o havia sonhado primeiramente nu para depois pôr-lhe as roupas. Porém, tanto tempo transcorrido, começou a temer que fosse surdo, ou mudo, ou pior: não gostasse dela nem um pouco. Que a odiasse por ela tê-lo moldado inteiramente conforme a sua vontade. Que o quisera bom demais, bravo demais -- demasiado: augusto em cada detalhe.
Então, tomou coragem e esticou o dedo tocando-o. Era quente, pulsante, vivo -- um homem, não uma estátua! -- Ela, então, fechou o punho e bateu em seu joelho ordenando: - Fale!
Mas ele não falou. Ela então se afastou cheia de horror, pois compreendera que o fizera perfeito. Perfeito demais. Esquecera somente de lhe dar uma alma. Existiria uma alma perfeita?
Mas não era isso, era pior. E seu grito soou terrível.
- Sou eu que não sou perfeita.
E, gritando, desejou que jamais tivesse feito seu corpo, sua cabeça... e que sua boca, ora, que a sua boca fosse igual a qualquer boca. Uma boca qualquer, que pudesse beijá-la com amor.
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